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Uma noite de muito(s) amor(es)

 

 

   Ela fazia filosofia. Fazia não, faz. Ainda não morreu. Pelo menos não diz nada na sua timeline. Mas não faz parte da minha vida mais. Foi uma noite só. E que noite! Nunca achei que fosse passar por tanta coisa, em tão pouca coisa. Foi mais ou menos assim...

   O sábado de manhã, no centro da cidade do Rio de Janeiro, é uma das situações mais singulares que existem. Arriscaria a dizer que é um conceito de vida. Difícil descrever só com palavras. Faltaria o cheiro, o gosto na boca, a luz da aurora... . Enfim. Tem um constraste muito, mas muito grande mesmo, entre a sensação que você tem, quando está na fila para entrar na festa, por volta das onze e o barulho reminiscente na sua cabeça, às seis da manhã. É um conceito. Dificíl para descrever até mesmo com quem esteve com você a noite inteira. Que foi o caso. Estávamos no banco da praça do famoso "bar da cachaça". O cimento daquele banco incomodava, no mau sentido, mas o maior incômodo, no bom sentido, eram as palavras dela. Incômodo no sentido de não deixar de pensar. Era muito informação. Mas tudo era muito gostoso.

   "Como assim descrever?" - Perguntei curioso para ela.

   "Descrever rapaz." - Ela me chamava de rapaz. Era engraçado. - "Descreve para mim como

foi a noite.".

   Fiquei um pouco surpreso. Não tinha certeza o que ela queria saber. Como a garrafa ainda

estava pela metade, vi que teria tempo ainda caso ela quisesse outra abordagem. Resolvi ser

direto: "Eu te vi na fila. Você estava no celular. Te achei bonita. Quis chegar mais perto. Esperei

a festa rolar. Te procurei. Conversamos. Tivemos um lance muito legal. Uma noite espetacular.

Não queria que fosse embora sozinha. Resolvi perder minha carona para esperar a hora do

seu ônibus." - E terminei, olhando para ela, e esperando sua reação.

   "Então você me ama muito." - E riu. Com sua risada mais despretensiosa e despreocupada

que tinha. Parecia que não importava muito a reação das pessoas. Eu diria, do mundo.

   "Quê?! Não não...". Estava preocupado. Em um mundo onde todas as pessoas querem tudo

muito rápido, eu não queria que tivesse uma maluca do meu lado. Felizmente ela era mais sábia do que eu.

   "Relaxa rapaz." - De novo, a coisa do rapaz. - "Não estou apaixonada por você. Foi uma brincadeira com as palavras. Em filosofia o amor é algo muito discutido. Existem várias definições. E, segundo tudo o que me disse, você sentiu três tipos de amores."

   Cativante. Essa era a palavra. Sua voz era um pouco rouca. Constrastava com seu corpo. Nessa intempérie de atenção, não tive outra opção, senão deixar ela me explicar, perguntando da maneira mais sincera naquela momento: "Que po$%# é essa que você tá falando?" - Eu disse rindo. E me inclinei para trás, deixando ela proferir um dos discursos mais bonitos que já vi no bar da cachaça.

 

                                                                                "O pensamento grego" - disse ela - "tem uma ruptura muito grande. Relatada em sua maior     

                                                                                        parte nos trabalhos de Platão denominados diálogos. Onde ele apresenta os pensamentos   

                                                                                     de Sócrates. A coisa é tão séria que chamamos os filósofos anteriores de pré-socráticos."    

- Eu escutava fascinado. - "E é em um dos diálogos de Platão, que Sócrates discursa sobre o

                                                                                        amor. O nome do diálogo é "O banquete". Vale a pena. Claro que eles não falavam português                                                                                     na época. Então o nome "amor", na obra, é a tradução do conceito "Eros". E a definição do     

                                                                              amor erótico é: ama-se aquilo que se deseja e que não se tem." - Começou a ficar mais fácil,

                                                                                     pensei. E dei um sorriso leve. Ela sorriu de volta. E que sorriso. Continuou: "Portanto, para     

                                                                                              Sócrates, apenas se ama aquilo que não se tem. É o sapato na vitrine, o Deus que não                                                                                                   se toca... aquilo que não se alcança. E ainda, se for alcançado, deixa de ser amado, e           começa a ter outro amor. Amor erótico. Que foi o que você sentiu quando me viu na fila."

  Eu tive que concordar. Claro, descrever o que passou comigo quando a vi, com aquele decote, não foi exatamente daquela maneira. Eu não pensei "Ó céus! Estou sentindo um amor eros.". De Sócrates, sei lá. Mas ela tinha razão. Quis muito aquilo que desejei e que não tinha. Não consegui ficar mais de 2 segundos só com meus pensamentos. Ela continuava a falar e eu queria mais. "Bem. Então foi cerveja. Você falou com aquele grupo de meninas." - Ela disse isso e piscou. Eu já estava achando que nada passava desapercebido por ela. "E depois de um tempo veio falar comigo. Com aquele sorrisinho maroto. Conversamos. Vi que você não era nenhum tarado. Não tinha pêlos no nariz e nas orelhas. E nem adianta me olhar assim. Isso faz diferença para uma mulher!" - E deu outra risada. E me fez querer mais. Ela continuou. "Nos beijamos. E conversamos a noite inteira. Você falou de você. Nem tanto. O que foi bom. Me escutou. Eu falei de mim. Talvez um pouquinho demais. E continuamos, entre beijos e convesas, a nos conhecer mais. E, já indo para o final da festa, você quis muito aquilo que estava te alegrando. No caso eu." - E eu concordei. Cara, não tinha como não concordar. - "Então. Esse é o amor Philia. O amor para Aristóteles. Você ama aquilo que te alegra. Os filhos que te alegram, o emprego que te dá dinheiro, enquanto essas coisas forem fontes de alegria, você as ama. No caso, a nossa conversa e nossos beijos estavam te alegrando bem. Ou seja, você estava me amando à moda aristotélica."

   "Então tá né?" - Pensei. E não tinha outra saída. Ela descreveu bem o que eu sentia. E o final

me surpreendeu. Ela terminou dizendo: "E lembra no final da festa? Seu amigo falando que tinha

que levar aquela garota para casa. Você ainda pediu para ele se tinha como levar. Mas acho que

eles estavam muito entretidos entre si. E a casa dela era pro lado oposto da minha. Enfim, não

tinha como. E para mim, pegar o ônibus era uma opção que só começava às seis. E o que você

fez? Falou com ele que também não precisava te deixar no caminho e que esperaria comigo até

a hora do meu ônibus. Ou seja, se sacrificou de alguma maneira... deixou de ter a satisfação de

ter carona de carro... ficou acordado mais algumas horas... em prol da minha felicidade. E esse,

o último amor da noite, é o amor ágape, o amor de Cristo."

   Sério. Sem palavras. Por mim eu ficaria mais uma noite inteira com aquela mulher. Apesar do assunto filosófico, aquilo era uma química muito boa. Não me arrependi de ficar até aquela hora. Mas ela pareceu ler minha mente, quando pensei na hora, e disse: - "Aliás, deu seis horas. Tenho que ir.". E assim acabou nossa última ceia, que tinha começado com um banquete. "Te acompanho." - Disse eu. E foram os últimos passos. Pelo menos deu tempo de agradecer.

 

RS

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